Contrato foi firmado com a Topmed, ainda durante a gestão Mandetta. Outra empresa investigada pelo TCU também foi favorecida
Sob a gestão do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde pagou R$ 54,1 milhões a duas empresas com contratos investigados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por suspeitas de sobrepreço e favorecimento das contratadas.
A Topmed Assistência à Saúde LTDA e a Talktelecom Comércio de Equipamentos de Informática e Serviços Empresariais S/A receberam, respectivamente, R$ 32.062.181,67 e R$ 22.037.333,87, segundo dados do Portal da Transparência. No primeiro contrato, o valor foi pago mesmo após fiscais do Ministério da Saúde reprovarem nota fiscal. No segundo, a pasta chegou a adiantar pagamento de R$ 4,1 milhões, apesar de a Advocacia-Geral da União (AGU) indicar a possibilidade de rejeitar o serviço devido às suspeitas de irregularidades.
- Servidores do ministério denunciaram, que foram pressionados pelo alto escalão da pasta para autorizar os pagamentos, em um modus operandi parecido – e até mesmo mais avançado, uma vez que as transferências foram realizadas – à negociação da vacina indiana Covaxin. Eles pediram para não serem identificados por medo de represálias.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, que apura ações e omissões do governo federal durante a pandemia, tem se movimentado para apurar essas denúncias e enviou série de requerimentos ao Ministério da Saúde.
Os contratos foram firmados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) entre o fim de março e o início de abril de 2020, ainda durante a gestão do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, hoje crítico ácido do chefe do Executivo federal e aspirante a uma candidatura ao Planalto.
Ambos foram assinados após dispensa de licitação devido à pandemia do novo coronavírus. No total, o acordo com a Topmed era de R$ 144 milhões, e, com a Talktelecom, de R$ 46,8 milhões. O primeiro foi rescindido em meio às investigações do Tribunal de Contas e após diretoria da própria pasta apontar uma série de fragilidades, já na gestão de Pazuello. Ainda assim, foram transferidos R$ 32,1 milhões.
“Graves irregularidades”
Em maio de 2020 o Ministério Público junto ao TCU abriu duas investigações (TC 018.717/2020-9 e TC 018.977/2020-0) para apurar indícios de “graves irregularidades” nos contratos firmados pelo Ministério da Saúde com as empresas de telessaúde.
A Topmed foi contratada para operacionalizar serviço pré-clínico para atendimento remoto, via telefone, por seis meses (podendo ser prorrogado), na pandemia. Inicialmente, o governo propôs a contratação emergencial no valor de R$ 26,6 milhões. O custo por cidadão seria de R$ 5,80.
“Ocorre que, no decorrer das tratativas internas para a ansiada contratação, em despacho de 19 de março, o mesmo órgão ministerial (SAPS [Secretaria de Atenção Primária à Saúde]), inesperadamente, declarou que o valor unitário do atendimento não eram os proclamados R$ 5,80, mas sim R$ 23,19, ou seja, quatro vezes mais. […] E chegou, sabe-se lá por quê, ao valor total do contrato de R$ 144 milhões”, assinala o procurador Marinus Marsico, na representação.
Além disso, o MP do TCU apresentou suspeitas sobre a capacidade da empresa para prestar o serviço. Na data da contratação, a Topmed tinha estrutura suficiente para atendimento de 191,2 mil chamadas mensais – e o contrato feito com a pasta estimava 1,1 milhão de ligações por mês, quase seis vezes o limite da empresa até então.
Pressões
Esses indícios de irregularidades também foram constatados pela equipe de fiscalização do próprio Ministério da Saúde. Os processos, com mais de 2,2 mil páginas, do Sistema Eletrônico de Informações (SEI) desses contratos. O SEI é um sistema de produção e gestão de documentos.
Nota da Diretoria de Integridade (Dinteg) da pasta, datada de 2 de julho do ano passado, revela vícios que se declaravam o acordo com a Topmed como “excessivamente oneroso” para a administração pública, com superfaturamento e direcionamento para a contratação, o que deveria, teoricamente, ter forçado uma imediata apuração e, segundo especialistas em gestão pública, a suspensão de qualquer pagamento, até que todas as responsabilidades fossem apuradas.
A diretora Carolina Palhares Lima aponta, no texto da Dinteg, que a solução escolhida como objeto do acordo com a Topmed para o serviço de telessaúde contemplou diversos serviços que já estavam à disposição do ministério; superfaturamento de cerca de R$ 84 milhões no contrato; e direcionamento para a contratação da empresa, atestado por “uma série de modificações na versão inicial do projeto da contratação, favorecendo a contratada”.
“Os fatos expostos indicam a ocorrência de um direcionamento para que a empresa Topmed Assistência à Saúde LTDA. fosse a selecionada para prestar os serviços, uma vez que não houve pesquisa por soluções similares que permitisse garantir que escolhida seria a única capaz de atender à necessidade da Administração”, assinalou a diretora de Integridade.
O Ministério da Saúde, ainda assim, efetuou o pagamento de R$ 32,1 milhões no fim de dezembro de 2020, seis meses depois do parecer da própria Diretoria de Integridade – órgão que deve justamente zelar pela correção nas ações e contratações do ministério.
Pouco antes da nota do órgão de controle interno do Ministério da Saúde, em junho do ano passado, um Relatório de Execução e Fiscalização da Prestação de Serviços já tinha analisado nota fiscal emitida pela Topmed e reprovado o pagamento, por não haver indícios de que os serviços haviam sido executados como relatados pela empresa.
Essa nota fiscal foi paga seis meses depois, em dezembro, após pressão a servidores, revelam documentos obtidos pelo Metrópoles.
“A nota fiscal […] informa que a quantidade de serviço faturado foi de 1, e o valor unitário de R$ 24.001.650,00. Dividindo-se esse valor global pelo valor unitário definido no contrato, tem-se que houve, no período, 1.125.253 ligações no primeiro mês, mais do que o dobro do que foi informado pela própria empresa. Já as 543.205 ligações informadas a um custo unitário de R$ 21,33, totalizam R$ 11.586.562,60, e não o valor apresentado na Nota Fiscal. Assim, a discriminação genérica do valor na Nota Fiscal não permite avaliar o custo unitário por ligação e nem as diferenças de custo unitário do serviço nos primeiros 30 dias como proposto no item 1.7 do Projeto Básico”, assinalou o relatório.
As pressões teriam começado logo após a equipe reprovar essa nota de pagamento à empresa. Uma dessas intimidações teria ocorrido em 24 de julho, quando o chefe de gabinete da secretaria-executiva do Ministério da Saúde, Paulo Marcos Rodopiano, ligou para a estação de trabalho dos fiscais de contrato, ordenando alterar o relatório de pagamento que o grupo de trabalho tinha negado.
Pouco antes da nota do órgão de controle interno do Ministério da Saúde, em junho do ano passado, um Relatório de Execução e Fiscalização da Prestação de Serviços já tinha analisado nota fiscal emitida pela Topmed e reprovado o pagamento, por não haver indícios de que os serviços haviam sido executados como relatados pela empresa.
Essa nota fiscal foi paga seis meses depois, em dezembro, após pressão a servidores, revelam documentos obtidos pelo Metrópoles.
“A nota fiscal […] informa que a quantidade de serviço faturado foi de 1, e o valor unitário de R$ 24.001.650,00. Dividindo-se esse valor global pelo valor unitário definido no contrato, tem-se que houve, no período, 1.125.253 ligações no primeiro mês, mais do que o dobro do que foi informado pela própria empresa. Já as 543.205 ligações informadas a um custo unitário de R$ 21,33, totalizam R$ 11.586.562,60, e não o valor apresentado na Nota Fiscal. Assim, a discriminação genérica do valor na Nota Fiscal não permite avaliar o custo unitário por ligação e nem as diferenças de custo unitário do serviço nos primeiros 30 dias como proposto no item 1.7 do Projeto Básico”, assinalou o relatório.
As pressões teriam começado logo após a equipe reprovar essa nota de pagamento à empresa. Uma dessas intimidações teria ocorrido em 24 de julho, quando o chefe de gabinete da secretaria-executiva do Ministério da Saúde, Paulo Marcos Rodopiano, ligou para a estação de trabalho dos fiscais de contrato, ordenando alterar o relatório de pagamento que o grupo de trabalho tinha negado.
A lei 8.666/1993 estabelece que “todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada”.
O próprio TCU, porém, não localizou nos autos “relevantes razões de interesse público atreladas ao pedido” e solicitou esclarecimentos.
Só em fevereiro de 2021, poucas semanas antes da saída de Pazuello do comando da pasta, o fiscal técnico do contrato, Wesley Pires Barbosa, solicitou o cancelamento do saldo remanescente da nota de empenho de R$ 111,9 milhões (o valor restante do contrato), tendo em vista o encerramento do acordo.
Provável dano ao erário
Em relação ao acordo com a Talktelecom, o Ministério da Saúde informou ao TCU ter rescindido o contrato, em 31 de agosto de 2020, conforme relatório do próprio tribunal.
Já em 2021, entretanto, o Portal da Transparência assinala mais dois pagamentos à empresa, em 5 e 9 de março, no mesmo contrato 20/2020, ainda na gestão Pazuello: R$ 7.789.705,93 e R$ 812.951,09
Um mês e meio antes da alegada rescisão, a companhia já tinha recebido um adiantamento na ordem de R$ 4,1 milhões. A transferência desconheceu sugestão feita, em 12 de junho de 2020, pelo advogado da União Antônio Marinho da Rocha Neto:
“É juridicamente possível a tomada espontânea pela Administração de decisão de suspensão temporária do pagamento adiantado pactuado contrato em tela, sendo inclusive recomendável à autoridade competente desde que por esta verificada a existência de: a) indícios de irregularidades no contrato em tela; e b) existência de risco de prejuízo patrimonial à Administração pelo referido pagamento”, assinalou o advogado.
Esses pagamentos também estão sendo apurados pelo TCU, no âmbito do mesmo processo. “Os referidos fatos tratam, essencialmente, do núcleo do objeto em análise, além de desaguarem em provável dano ao erário, ocasionado por eventuais pagamentos realizados por serviços não prestados, no âmbito dos Contratos 19/2020 e 20/2020”, assinalou o TCU, em instrução avaliada pelo Metrópoles.
“Logo, vez que encerrado o contrato, reputa-se necessário ação desta especializada no sentido de apurar os aspectos ainda não esclarecidos pelo MS, a exemplo de saber se houve a implementação de IMR adequado à economicidade. Cogente, ainda, seja esclarecido como se deram as avaliações dos fiscais quanto aos pagamentos dos serviços prestados durante o período de execução contratual, bem como a adequação dos serviços ao previsto pelo Termo”, completou a Secretaria-Geral de Controle Externo do TCU.
Outro lado
Ministério da Saúde, Talktelecom e Topmed foram procurados no início da tarde dessa sexta-feira (9/7) para prestarem esclarecimentos sobre a denúncia, mas não se manifestaram até a publicação desta reportagem.
Também foi solicitado ao Ministério da Saúde que o secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara Medeiros Parente, a diretora do Departamento de Saúde da Família, Renata Maria de Oliveira Costa, e o chefe de gabinete da Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde, Paulo Marcos Rodopiano, se pronunciassem sobre o achado, mas o pedido também não foi correspondido.
Em todos os casos, o espaço segue aberto para futuras manifestações. Esta matéria será atualizada se as respostas forem enviadas.