Era 2 de abril de 2022 quando Izolda Cela, então no PDT, tornou-se a primeira mulher governadora do Ceará. Três de seus antecessores, arquitetos daquele momento histórico, comemoraram. Abraçados, os pedetistas Ciro e Cid Gomes e o petista Camilo Santana cantaram “Terral”, sucesso de Belchior, Ednardo e Amelinha que exalta a cearensidade.
“Eu sou a nata do lixo, sou do luxo da aldeia, sou do Ceará”, cantaram em uníssono e numa sintonia refletida até nas camisas brancas. Quase um ano e meio depois, a cena, com Ciro entre Camilo e Cid, parece uma lembrança longínqua.
Ao longo de 2022, o então candidato à Presidência e seu irmão romperam, pondo fim a uma trajetória de décadas de lealdade e, de quebra, ao acordo de 16 anos entre PDT e PT no Ceará. Com a eleição municipal de 2024 se aproximando, o racha se aprofunda.
Naquele momento de descontração de abril de 2022, Camilo, hoje ministro da Educação do governo Lula, tinha acabado de renunciar ao governo para disputar o Senado. Tentaria, com Ciro, reeditar o arranjo de 2018, quando foi reeleito sem apoiar no primeiro turno o então presidenciável do PT, Fernando Haddad. Nos santinhos do petista cearense, quem aparecia ao seu lado era Ciro.
O clima ameno entre Ciro, Cid e Camilo ruiu pouco depois do vídeo deles cantando abraçados. Os meses seguintes foram marcados por crises e disputas nos bastidores entre os líderes de PT e PDT em torno da sucessão estadual.
Líderes dos dois partidos consideravam que Izolda Cela, empossada governadora, seria candidata natural à sucessão. Segundo aliados de Ciro, porém, a convergência em torno de Izolda veio abaixo por açodamento de Camilo.
O petista quis lançar Izolda candidata logo após a posse dela. Ciro foi contra: queria que ela ganhasse musculatura e se cacifasse para a reeleição de forma natural. Desta forma, chegaria à eleição não como a “candidata de Camilo”, mas como um nome forte amparado por um grupo político amplo e diverso.
Em seu núcleo mais próximo, no entanto, Ciro apontava ainda outro motivo para não escolher Izolda. Apesar de ter ingressado na política com o apoio da família Ferreira Gomes, o então presidenciável achava que a aliada tinha uma afinidade grande com o PT e poderia traí-lo para mergulhar na campanha de Lula.
Um dos motivos para isso, segundo alegava, era o fato de Izolda ser casada com o petista Veveu Arruda. Ciro temia que, assim que fosse eleita, a governadora deixasse o PDT e se filiasse ao partido do marido.
Tão logo Izolda tomou posse, Camilo passou a elogiar a governadora. Para o meio político, os sinais eram claros: o petista indicava sua preferência no PDT, que ainda tinha como postulantes o ex-prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio, o deputado federal Mauro Filho e o deputado estadual Evandro Leitão.
No acordo entre os dois partidos, era a vez de o PDT indicar o candidato ao governo cearense. A movimentação de Camilo foi vista como uma tentativa de interferir na escolha dos pedetistas.
Ciro questionou a atitude do ex-governador e ouviu de Camilo que a decisão tinha sido tomada em conjunto com Cid. A estratégia, contudo, não passou pelo PDT. Ciro viu o movimento como uma traição, rompeu com o irmão e intensificou a estratégia de ataques a Lula na campanha presidencial.
Com o racha, Ciro declarou apoio a Roberto Cláudio, que acabou consagrado na convenção como candidato ao governo. Ali, o PDT sepultou a aliança estadual com o PT, que indicou o deputado Elmano de Freitas para a sucessão estadual. O petista foi eleito no primeiro turno.
A atitude do irmão revoltou Cid, que, temendo romper de vez a relação entre os partidos, se afastou da disputa. Deixou a coordenação da campanha de Ciro e, em julho, viajou para seu sítio em Meruoca, cidade vizinha a Sobral. Licenciado do mandato no Senado, desligou o celular e não atendeu nem os aliados que foram a sua casa.
Cid não foi nem mesmo à convenção que oficializou o irmão como candidato à Presidência, em julho de 2022. O evento aconteceu na sede do PDT, em Brasília, mas o senador já estava em Meruoca. Sua ausência foi sentida por correligionários.
A resposta que dava para não se envolver na eleição é que estava cansado da vida política e queria se aposentar logo. Seus planos, porém, eram outros.
No período de afastamento, Cid se reuniu uma vez com Camilo Santana, em 21 de julho, e disse que se manteria distante da eleição estadual. Quatro dias depois, recebeu Ciro, que havia desembarcado em Sobral para gravar inserções para o horário eleitoral.
Juntos, os irmãos beberam vinho e jantaram um macarrão à bolonhesa preparado pelo próprio Cid. Na conversa, definiram que o senador voltaria a atuar na campanha de Ciro ao Planalto —o que não aconteceu.
Em agosto, Cid voltou para Fortaleza, mas seguiu distante da campanha. Enquanto Ciro era abandonado por aliados e pelo próprio partido, seu irmão fazia poucas agendas para distribuir santinhos: foi a Sobral e Juazeiro do Norte.
Imerso na campanha presidencial, Ciro vivia um círculo vicioso. Dizia que o afastamento do irmão era culpa do PT e intensificava os ataques a Lula. E quanto maior a ofensiva contra seu concorrente, mais o pedetista se afastava de Cid e se isolava dentro do próprio partido.
Sem crescer nas pesquisas, o presidenciável do PDT passou a ser alvo de uma ação pelo voto útil em Lula. Até mesmo Roberto Cláudio, a quem apoiou para ser o candidato ao governo estadual, o escondeu na campanha.
Ciro sentia-se traído também por Camilo, a quem qualificava como seu devedor pelos apoios anteriores.
O sentimento só aumentou quando o viu de mãos dadas com o ex-senador Eunício Oliveira (MDB) para a campanha de Lula. A relação entre o ex-presidenciável e o emedebista é péssima. Ciro responde até hoje na Justiça pelos ataques que fez a Eunício na primeira disputa de Camilo ao governo.
A aproximação já era indigesta para o pedetista desde 2018, quando Camilo e Eunício se uniram ainda no primeiro turno. Ter os dois no mesmo palanque, a favor de Lula, foi a pá de cal para Ciro.
Após a derrota de Ciro na disputa presidencial, Cid Gomes reapareceu no segundo turno. O pedetista se tornou ativo na campanha de Lula, o que aprofundou ainda mais a insatisfação que o irmão sentia.
Em entrevista à Folha, Cid disse que não se manifestou no primeiro turno para não esfacelar o grupo no Ceará. A aliados afirmava que o pleito polarizado entre Lula e Jair Bolsonaro (PL) não deixava espaço para Ciro. Por isso, não entrou na campanha para não aumentar ainda mais o vácuo entre o PDT e o PT.
Cid disse também que tudo o que previu se confirmou: a derrota de Ciro e de Roberto Cláudio, e a consequente debandada de prefeitos para as asas do novo governador.
A migração para a base de Elmano Freitas, no entanto, não foi só nos municípios. O próprio Cid liderou um movimento para reatar a aliança com o PT no estado. Trouxe para seu lado os irmãos Ivo Gomes, prefeito de Sobral; Lia Gomes, deputada estadual; e Lúcio Gomes, que assumiu a Companhia Docas do Ceará.
Pedetistas apontam que, nesse novo cenário de racha entre Cid e Ciro, há um desequilíbrio de forças —com o ex-presidenciável enfraquecido dentro do partido.
Ciro teve o pior resultado de sua trajetória em uma campanha presidencial, o quarto lugar, com 3% dos votos. Também brigou com aliados próximos e com a executiva nacional do próprio partido.
Aos olhos de hoje, aliados de Cid e de Ciro veem o rompimento entre PT e PDT como o resultado de uma sequência de erros que incluíram falta de comunicação, disputa de egos e política feita com o fígado em meio a querelas pessoais.
Sobre o racha, Cid tem dito que a questão familiar se resolve em casa. Mas as feridas seguem abertas: no dia em que assumiu o comando do PDT cearense, em julho, o senador evitava até mesmo citar o nome do irmão nas entrevistas.
Foi questionado sobre o motivo e emendou: “Ciro, Ciro, Ciro, Ciro, Ciro. Não tenho nenhum problema em falar o nome dele. Eventualmente, eu vou ter uma posição, ele vai ter outra. Mas o importante é que gente trate isso de forma respeitosa.”
Camila Zarur e João Pedro Pitombo/Folhapress