
A promessa parecia irresistível. Mônica, como tantos outros, acreditou ter encontrado a chance de sua vida ao ouvir um episódio do Nerdcast Empreendedor, do Jovem Nerd. Nos microfones, o bilionário e guru do empreendedorismo Flávio Augusto da Silva anunciava um ambicioso programa: financiamento de até R$ 500 mil para abrir uma franquia da Wise Up, sua famosa rede de escolas de inglês.
Segundo o empresário, o empréstimo seria concedido “sem fiador, sem garantia, sem qualquer colateral”. Mais atrativo ainda: a expectativa de lucro era alta — uma unidade com 400 alunos renderia cerca de R$ 80 mil líquidos mensais. “Esse projeto, para nós, é poesia”, definiu Flávio Augusto.
No entanto, quatro anos após o lançamento, a suposta oportunidade virou caso de polícia. Em 2024, uma denúncia formal foi apresentada à Polícia Civil do Paraná, que abriu inquérito para investigar possível crime de estelionato contra o bilionário. Conforme a corporação, “a vítima foi ouvida e as investigações seguem em curso”.
Paralelamente, em abril deste ano, um grupo de 17 ex-participantes levou acusações ao Ministério Público, não apenas contra Flávio Augusto, mas também contra Édio Alberti (head da Wise Up) e os diretores André Cardoso, Davison Carvalho e Marcelo Matheus, apontando um suposto esquema de pirâmide financeira.
Segundo os denunciantes, além de prejuízos financeiros e promessas não cumpridas, eram submetidos a jornadas exaustivas de até 14 horas diárias, pressionados por metas consideradas abusivas, com monitoramento constante por câmeras.
Procurados, todos os citados silenciaram, exceto Flávio Augusto, que negou categoricamente as acusações: “Falar que isso é uma pirâmide é absurdo. Toda franquia tem taxa de franquia. Isso aqui é totalmente legal”. Para ele, o projeto sofreu com os efeitos da pandemia, mas reforça: “A gente tá ajudando quem não tem recursos, emprestando dinheiro que nenhum banco ou o governo emprestaria”.
A Wiser Educação, holding da Wise Up, também se manifestou: “Refutamos veementemente qualquer tentativa de associar nossas práticas a estelionato ou pirâmide”. A empresa alegou desconhecer a investigação até ser procurada pela imprensa e que está adotando as providências legais cabíveis.

O Jovem Nerd, por sua vez, esclareceu que a relação com Flávio Augusto “sempre foi estritamente comercial, por meio de cotas de patrocínio”, sendo as campanhas “de inteira responsabilidade dos anunciantes”.
O outro lado do empreendedorismo: denúncias de exploração, contratos irregulares e “lavagem cerebral”
Documentos e depoimentos obtidos revelam uma realidade muito distante da prometida por Flávio Augusto, que se consolidou como símbolo do empreendedorismo brasileiro, defensor da meritocracia e crítico ferrenho da CLT.
Para ingressar na chamada Universidade da Matrícula (UM), era necessário desembolsar R$ 20 mil, sem direito a ajuda de custo, e passar ao menos seis meses em treinamento intensivo, presencialmente em São Paulo.
“Se for aprovado, em seis meses você tem um chequinho meu, assinado, para abrir sua franquia”, prometeu o empresário no podcast. Contudo, hoje admite que o tal “cheque” nunca existiu; o financiamento seria destinado aos fornecedores da franquia, com a taxa de inscrição sendo abatida do valor total — que variava de R$ 100 mil a R$ 120 mil.
Ex-participantes relatam que trabalhavam até a meia-noite, sob pressão constante e ouvindo bordões como: “quem é da UM não almoça, engole a comida e volta pro foco”.
Na prática, formava-se um verdadeiro exército de vendedores dos cursos Wise Up. Porém, segundo advogados que representam o grupo de vítimas, o programa operava como um esquema clássico de pirâmide financeira: cada novo “aluno” era incentivado a vender cursos e, posteriormente, recrutar novos participantes, retroalimentando o ciclo.
Segundo relatos, havia controle rígido sobre as comunicações internas, metas cada vez mais elevadas e estímulos simbólicos — como brindes e viagens —, compondo um ambiente de “genuína lavagem cerebral”.
O ingresso na UM ocorria sem contrato prévio: os interessados eram orientados a “pagar para ver”. Só após iniciarem as atividades recebiam documentos para assinatura — muitas vezes com datas retroativas.
Mônica, por exemplo, só assinou os contratos cinco meses após transferir os R$ 20 mil de inscrição. Flávio Augusto confirma a prática, mas atribui as falhas à desorganização causada pela pandemia: “Infelizmente, houve exceção”.
A Wiser, por sua vez, afirma que suspendeu temporariamente o programa durante a pandemia, isentando os participantes do pagamento dos financiamentos.
“Passei um ano e meio endividada, pagando para trabalhar”
Foram ouvidos três ex-participantes sob anonimato. Mônica, de 30 anos, do Rio de Janeiro, relata que precisou pedir ajuda à sogra, que vendeu um terreno, e ainda contrair empréstimos para pagar os R$ 20 mil de inscrição. Sua meta: vender 280 cursos.
“Era telemarketing disfarçado de treinamento. Aprendíamos técnicas de manipulação para que as pessoas se sentissem mal em dizer não”, descreve. Com dificuldade para bater as metas, adoeceu e foi diagnosticada com infecções recorrentes por ansiedade.
Ao relatar sua situação ao head Édio Alberti, recebeu como resposta uma risada: “Aquilo me fez muito mal. Foi ali que entendi que não dava mais”, desabafa.
Pedro, outro ex-participante de São Paulo, ficou quase dois anos no programa. Quando finalmente foi aprovado para receber o financiamento, que seria de cerca de R$ 300 mil, desistiu: “Percebi que estava infeliz. Talvez tenha cometido um erro”.
Ele afirma que, apesar do discurso oficial de formação de franqueados, a função prática era de vendedor: “É quase uma seita. Um ambiente revestido de motivação, mas que te impede de perceber a exploração”.
Pedro calcula ter recebido apenas R$ 16,5 mil em um ano, o equivalente a R$ 4 por hora de trabalho. Começou o programa com uma reserva de R$ 80 mil e saiu com apenas R$ 15 mil.
Sirlene, de 38 anos, de Recife, também vendeu o carro e contraiu empréstimos para pagar a inscrição. Fez 343 matrículas em seis meses, superando a meta, mas relata que a comissão só era integral se a venda fosse à vista.
Além disso, se o cliente cancelasse, tinha que devolver o valor recebido. Tudo era feito via nota fiscal, como se fosse uma vendedora autônoma, sem vínculo formal com a empresa.
Quando finalmente concluiu as metas, Sirlene foi informada que o financiamento prometido de R$ 500 mil seria, na prática, de R$ 150 mil — dos quais R$ 120 mil seriam retidos como taxa de franquia. O valor efetivo a ser liberado: apenas R$ 50 mil. Ela afirma que nunca recebeu esse montante.
Ao procurar outros participantes, descobriu que o mesmo padrão se repetia: “Não era desorganização. Era método. Um método para explorar, sugar e descartar”.
Flávio Augusto: “não vai dar em nada”
Flávio Augusto afirma que Sirlene não recebeu o financiamento porque não instalou a escola, e acusa sua ex-sócia de tê-la processado. Sirlene nega: “Não respondo a nenhum processo ou investigação criminal. Essa carta foi usada para tentar nos deslegitimar”.
O empresário também acusa o grupo de tentativa de extorsão de R$ 4 milhões, mas não apresentou provas. As vítimas dizem que buscavam apenas a devolução dos valores investidos, compensações por despesas e danos morais: “Não queríamos estar aqui. Mas não vamos engolir a injustiça”.
Programa deu prejuízo, diz empresário
Segundo o próprio Flávio Augusto, a UM contou com cerca de 150 alunos, arrecadando aproximadamente R$ 3 milhões em taxas de inscrição. Porém, ele afirma que o programa “deu prejuízo”: “Nosso ganho está em abrir franquias, não em treinar pessoas”.
Os denunciantes, por sua vez, descobriram que só a 9ª turma movimentou ao menos R$ 2,3 milhões. No site Reclame Aqui, diversas queixas relatam histórias semelhantes: “O sonho virou pesadelo: perdi tempo, saúde e dinheiro”.
Diante da mobilização por reparação, a Wiser passou a monitorar ex-integrantes. O head Édio Alberti chegou a ligar para um deles, indagando: “Você acha que a gente tem alguma dívida com você?” — em gravação.
Denúncias contra Flávio Augusto e a Wiser: o outro lado do empreendedorismo no Brasil
Segundo Sirlene, o grupo que denunciou o esquema às autoridades já teve 29 pessoas, mas hoje conta com 17. “Algumas pessoas ficaram com medo, outras desistiram de prestar depoimento.”
Os advogados das 17 vítimas que levaram o caso à Justiça confirmam que tentaram negociar acordos de indenização diretamente com a Wiser, mas receberam contrapropostas que buscavam individualizar os casos e excluir alguns ex-participantes, como Sirlene. O grupo recusou por entender que o dano é coletivo.
O Ministério Público do Paraná (MPPR) informou que o inquérito ainda está em fase inicial e, por esse motivo, não irá se manifestar no momento.
Francisco Monteiro Rocha, professor de Direito Penal da UFPR, avalia que o caso apresenta indícios claros de estelionato — crime centrado na manipulação da confiança da vítima — e de fraude trabalhista, caso fique provado que vínculos empregatícios foram disfarçados por outros contratos.
Flávio Augusto: o guru da meritocracia anti-CLT
Foi dentro de uma mansão de R$ 190 milhões na Flórida que, em 2020, Flávio Augusto da Silva reorientou os rumos da Wiser. Até então, o grupo atuava majoritariamente com aulas de inglês presenciais na Wise Up. Com a pandemia, passou a incorporar negócios de tecnologia, educação online e empregabilidade.

A aposta deu lucro. O faturamento da holding saltou de R$ 215 milhões em 2019 para R$ 501 milhões em 2022.
Flávio Augusto se consolidou como uma figura influente do empreendedorismo brasileiro. Com 4,6 milhões de seguidores no Instagram, cultiva a imagem de ex-pobre que superou adversidades com esforço próprio após pegar um empréstimo de R$ 20 mil para fundar a Wise Up. Transformou sua trajetória em produto.
Em 2013, vendeu a rede para o grupo Abril Educação por R$ 877 milhões e, três anos depois, recomprou o negócio por R$ 398 milhões. A operação o transformou em ícone de “esperteza” empresarial e reforçou o mito da autossuficiência como caminho para o sucesso.
Com a reestruturação da Wiser na pandemia, ele apostou fortemente nos produtos digitais voltados à ascensão financeira, reforçando o discurso que o tornou célebre: o da meritocracia radical e da rejeição à CLT, vista por ele como uma trava ao progresso individual. A ideia de que o trabalho formal seria uma prisão hoje encontra eco entre jovens em busca de alternativas rápidas para enriquecer.
Em 2025, revelamos que Flávio Augusto passou a transitar por espaços institucionais de poder, atuando como uma espécie de conselheiro informal da Marinha — onde recebeu o título simbólico de “embaixador cívico”.
O posto, até então reservado a figuras ligadas à alta cúpula militar e a ministros de Estado, escancarou a aproximação entre o discurso empreendedor de corte liberal e setores conservadores do governo.
Em 2023, Flávio Augusto vendeu sua mansão em Orlando por R$ 190 milhões, em um negócio que ele classificou como “a maior transação imobiliária das Américas desde Colombo” – e foi festejado pela imprensa brasileira.
O discurso do nobre empreendedor esforçado de Flávio Augusto, no entanto, destoa das vítimas que alegam ter sido enganadas por ele. “É como se fosse o filme À Procura da Felicidade. Só que, no final do arco-íris, não tinha nada para entregar”, resume Sirlene.