
O mercado de trabalho brasileiro entrou numa nova era — e não exatamente por bons motivos. Um estudo inédito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), divulgado nesta quarta-feira (18), revela como o Brasil se transformou em um verdadeiro laboratório da exploração digital, onde plataformas como iFood e Uber impõem um modelo de trabalho baseado no monopólio, controle algorítmico e ausência quase total de direitos trabalhistas.
O relatório, organizado pela Clínica de Direito do Trabalho da UFPR, detalha o crescimento acelerado do setor: de 1,53 milhão de trabalhadores em 2021 para 2,3 milhões em 2024, um salto de 48%. Nesse universo, mais de 92% atuam em serviços baseados em localização, como transporte de passageiros e entregas.
Controle absoluto, sem patrão visível
A pesquisa escancara uma realidade brutal: os trabalhadores são controlados por algoritmos — sistemas opacos que definem tudo, desde as tarefas atribuídas até punições e bloqueios. “É um trabalho fragmentado e precarizado, onde o patrão é invisível, mas implacável”, resume o professor Sidnei Machado, coordenador do estudo.
Segundo relatos de entregadores e motoristas entrevistados, quem não segue as regras não escritas dos apps perde acesso às corridas mais rentáveis — ou simplesmente é expulso da plataforma. E o mais grave: tudo isso sem nenhum direito garantido pela CLT, como férias, 13º salário, jornada regulamentada ou estabilidade.
Um mercado dominado por poucos
O domínio é concentrado: Uber e 99 lideram o transporte de passageiros, enquanto iFood monopoliza as entregas. Para os autores do estudo, essa concentração não é casual — é parte da estratégia de monopólio que garante lucro às empresas ao mesmo tempo em que joga os riscos e os custos do negócio nas costas dos trabalhadores.
“Essas plataformas operam propositalmente no limite da legalidade, aproveitando-se da falta de regulação no país”, destaca Sidnei Machado. “Elas vendem um discurso de liberdade econômica e inovação, mas o que existe é a substituição do patrão por um algoritmo, e do contrato por uma promessa vazia de autonomia.”
Dados alarmantes sobre renda e condições
O retrato é ainda mais alarmante quando se olha para a renda: quase 60% dos trabalhadores ganham menos de dois salários mínimos, com condições ainda piores entre mulheres e trabalhadores com ensino superior.
Outra pesquisa, da Fairwork/Oxford, confirma: salários abaixo do mínimo e jornadas exaustivas são a norma entre os trabalhadores de app no Brasil.
Enquanto isso, a Abomitec — entidade que faz lobby por empresas como iFood e Uber — afirma que não existe vínculo de emprego e defende o modelo atual. Ela cita dados do Cebrap que apontam ganhos médios líquidos entre R$ 2.925 e R$ 4.756 para motoristas. No entanto, o estudo da UFPR contesta esses números e mostra que a realidade da maioria é muito diferente.
Regulação travada, justiça dividida
O estudo analisou mais de 4 mil decisões judiciais sobre vínculo empregatício com plataformas. O resultado? Um cenário de insegurança jurídica, com tribunais divididos e sem consenso claro. Muitos juízes ainda se baseiam na “autonomia contratual” para negar direitos, ignorando a subordinação digital imposta por algoritmos.
No Congresso Nacional, o cenário também é confuso: o PLP 12/2024, do governo Lula, propõe regulamentar os motoristas como autônomos com Previdência, mas ignora os entregadores. Já o PL 2479/2025, de Guilherme Boulos, tenta avançar ao estabelecer uma tarifa mínima e garantir proteção mínima com ou sem vínculo formal.
“Uberização” como sintoma de um colapso trabalhista
O estudo conclui que o modelo das plataformas é a face mais agressiva de um processo que já vinha corroendo direitos há décadas. A chamada “uberização” é apenas a versão digital da precarização: trabalho sem jornada definida, sem remuneração justa, sem regras claras.
“Essas empresas cresceram no vazio regulatório, operando em zonas cinzentas que confundem o direito e enganam o trabalhador”, finaliza Sidnei Machado. “O Brasil precisa urgentemente de um marco legal que reconheça a realidade dessa nova forma de subordinação e proteja quem realmente movimenta a economia: os trabalhadores.”