Mark Twain, um dos grandes nomes da literatura americana e do humorismo de modo geral, escreveu um texto que se chama Sobre a Decadência da Arte de Mentir. Sua tese é a seguinte: uma vez que a mentira é uma prática universal, não adianta esperar que ela suma. O melhor que podemos fazer é exigir que haja bons mentirosos.
“Nenhum homem de pensamento elevado e coração no lugar certo consegue contemplar as mentiras desleixadas e desajeitadas de hoje em dia sem lamentar profundamente a prostituição de uma arte tão nobre”, diz Twain.
Ninguém representa melhor a decadência da arte da mentira do que Jair Bolsonaro. Ele mente o tempo todo, mas de maneira tosca e torpe, exibindo aquela expressão que os romances de antigamente atribuíam aos vilões: o “esgar de ódio”. Nunca achei que isso existisse na vida real.
Bolsonaro não disse uma verdade sequer durante toda a pandemia. Mentiu sobre os riscos da doença e sobre o que era preciso fazer para domá-la. Tentou, mas não conseguiu, obrigar o Ministério da Saúde a falsificar o número de mortos. Na falta disso, arranjou um antiministro, Eduardo Pazuello, que aceitasse mentir com ele. Parece que o novo ocupante do cargo, Marcelo Queiroga, vai na mesma linha – apesar de ser médico.
Agora, Bolsonaro resolveu mentir também sobre a economia. Ele disse que o aumento nos preços dos alimentos é culpa dos governadores e prefeitos que decretaram medidas de isolamento social.
Como toda mentira, essa traz um fiapo de verdade. O fato de as pessoas ficarem em casa deu uma pequena contribuição ao aumento dos preços que tira o sono, quando não a própria comida, de milhões de brasileiros. Mas as causas reais são outras, como a redução na área de plantio de alguns produtos, como arroz, e principalmente a desvalorização do real. E sobre isso, governadores e prefeitos não podem fazer nada.
O real desvalorizado faz com que outros países venham comprar alimentos no Brasil como se estivéssemos em liquidação. O que sobra para o mercado interno fica mais caro, pelo mecanismo básico da oferta e da procura: quando muita gente deseja um produto escasso, o preço aumenta.
E por que o dólar ficou mais caro e continua subindo? Porque ninguém mais acredita que o compromisso de Bolsonaro com a redução dos gastos públicos seja para valer.
Por mais que Paulo Guedes jure de pés juntos que o teto de gastos é sagrado, quem tem dólares lá fora olha para o presidente e percebe que, no momento em que achar que precisa gastar livremente para ganhar a reeleição, ele joga Paulo Guedes, a prudência e o que mais estiver à mão pela janela. Como dizia Mark Twain, o mentiroso pode fechar o bico, mas suas mãos, seus olhos e toda a sua atitude vão revelar que ele está trapaceando.
Na raiz da inflação dos alimentos encontra-se, antes de mais nada, o governo. Ele mesmo, Bolsonaro, com aquele esgar…
Volto a Mark Twain. Ele tem uma solução para a decadência da mentira. “O que podemos fazer de sábio”, diz ele, “é treinar para mentir de maneira ponderada e judiciosa; mentir por boas causas, e não pelas más; mentir pensando nos outros, e não para nossa própria vantagem; mentir caridosamente, humanamente, saudavelmente, e não com crueldade, agressividade e malícia.” Infelizmente, essa é uma solução que Bolsonaro é incapaz de adotar.