Como o Google moldou a narrativa sobre o Marco Civil da Internet sem aparecer nas manchetes

Ministros Alexandre de Moraes e André Mendonça. STF retoma a votação do Marco Civil da Internet, após pedido de vista de Mendonça. (Foto: Ton Molina /Fotoarena/Folhapress)

Bastidores da influência: estudo financiado pela big tech pautou a imprensa e omitiu interesses diretos no julgamento do STF

No início da semana, um coro uníssono tomou conta da imprensa brasileira: o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet poderia desencadear um “caos” no Judiciário. Manchetes alarmistas previam desde custos milionários até a explosão de 750 mil novas ações judiciais até 2029. Mas havia um detalhe incômodo que ficou de fora das páginas: quem financiou o estudo que serviu de base para essas matérias foi o Google Brasil.

O levantamento em questão foi produzido pelo RegLab — think tank associado ao escritório Baptista Luz, especializado em clientes do setor de tecnologia, internet e telecomunicações. O estudo, que embasou a narrativa de crise iminente no Judiciário, traz em seus anexos a informação de que foi financiado pela própria big tech, que “possui interesse direto no resultado do tema 987 do STF”.

Embora o documento afirme que a empresa “não interferiu na análise dos resultados”, a relação entre financiador e conteúdo não é exatamente neutra. Como se sabe, quem paga pela música geralmente escolhe o tom. Ainda assim, veículos de mídia deixaram esse conflito de interesse escancarado fora do foco.

Essa estratégia de influência não é inédita. O Google tem um histórico de oposição à regulação das plataformas digitais — no Brasil e no mundo. Durante a tramitação do PL 2630, o chamado “PL das Fake News”, a empresa chegou a usar sua própria página inicial para exibir um banner contra o projeto. A Polícia Federal classificou a ação como abuso de poder econômico. No caso do PL da Inteligência Artificial (PL 2338), no Senado, novamente vimos resistência das big techs a qualquer proposta que aumentasse sua responsabilização.

Foto: Reprodução

Agora, o cenário se repete. Com a volta do julgamento do artigo 19 no Supremo Tribunal Federal, o Google se movimenta nos bastidores para evitar mudanças significativas no regime de responsabilidade das plataformas. Afinal, manter tudo como está serve aos seus interesses — mesmo que isso prejudique a sociedade, a democracia e, sobretudo, a proteção de crianças e adolescentes online.

Em pauta no STF está a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que hoje limita a responsabilização das plataformas a casos em que há descumprimento de ordem judicial. Os ministros podem optar por derrubar o artigo — tornando as empresas responsáveis de forma objetiva por conteúdos de terceiros — ou adotar uma interpretação conforme à Constituição, aplicando a responsabilização automática apenas a determinadas violações, como incitação à violência, discurso de ódio e abuso infantil.

O timing da retomada do julgamento é emblemático. Coincide com o aumento da tensão entre o Judiciário brasileiro e as big techs, em especial após os Estados Unidos anunciarem, no fim de maio, a restrição de vistos a estrangeiros acusados de “censurar americanos”. Um recado direto ao ministro Alexandre de Moraes, reforçado por um tweet provocativo de Jason Miller, ex-assessor de Donald Trump.

É nesse contexto turbulento que o STF volta a debater o futuro da regulação das plataformas no Brasil. Com um Congresso paralisado por interesses privados e articulações da extrema-direita — aliados frequentes das big techs — a decisão do Supremo ganha ainda mais peso. O que está em jogo é o equilíbrio entre liberdade de expressão, dever de responsabilidade e o direito coletivo à informação segura.

Enquanto isso, o Google continua a agir como maestro invisível, conduzindo a narrativa sem jamais aparecer no palco principal.