Depois do escárnio de Bolsonaro, Lula resgata a normalidade

Istoé

Depois de um dos períodos políticos mais conturbados da história nacional, com uma campanha presidencial polarizada seguida de uma tentativa frustrada de golpe de Estado, o feriado de Carnaval parecia reservar uma trégua providencial. Mas a tragédia no Litoral Norte de São Paulo, que causou pelo menos 49 mortos, colocou à prova novamente a capacidade de reação oficial e o espírito público dos gestores. Felizmente, nessa seara, a demonstração de uma união que há muito tempo não se via amenizou todo o sofrimento que ainda perdura entre as vítimas e seus familiares.

Com pouco mais de um mês no cargo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o político bolsonarista mais proeminente a emergir das últimas eleições, foi rápido em sua resposta. Transferiu seu gabinete para São Sebastião (SP), o epicentro do desastre, coordenou pessoalmente todos os esforços e decretou luto oficial de três dias em memória das vítimas. Da mesma forma, o presidente Lula interrompeu seu descanso na Bahia, no domingo, 19, deslocou-se com nove ministros e acionou todo o governo federal para auxiliar nos trabalhos de resgate. O prefeito de São Sebastião, o tucano Felipe Augusto, uniu-se aos dois em meio aos esforços. Os mais diversos órgãos oficiais das três esferas de poder, começando pela Defesa Civil, se deslocaram para a região em um esforço coordenado que há muito não se via. Apenas das Forças Armadas, 400 homens foram mobilizados, incluindo a maior nave da frota da Marinha, o navio-hospital Atlântico, com UTI, 200 leitos e seis helicópteros.

JUNTOS O presidente ao lado do governador Tarcísio de Freitas do prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (à dir.) (Crédito:Divulgação)

Essa união de esforços é elementar e republicana, é importante relembrar. Mas caiu em desuso na última gestão federal. Há apenas um ano, na virada de 2021 para 2022, quando grandes áreas da Bahia passaram por tragédia semelhante, Jair Bolsonaro achou desnecessário visitar o estado governado por um adversário do PT. Não foi apenas isso. Ainda posou para fotos sorridente, passeando de jet ski durante seu descanso em São Francisco do Sul (SC). “Espero não ter que retornar antes”, declarou à época. Um escárnio com o sofrimento alheio. No temporal de maio passado em Pernambuco, quando 194 pessoas morreram, o ex-presidente fez apenas um sobrevoo e aproveitou para atacar o então governador Paulo Câmara, do PSB – que não recebeu nenhuma ligação de solidariedade. Não foi uma surpresa. Essa falta de decoro com o cargo ou de empatia com as vítimas já tinha sido vista de forma chocante na pandemia, quando quase 700 mil brasileiros perderam a vida. O capitão não visitou um único hospital na época, e ainda imitou em tom de galhofa os pacientes com falta de ar.

Bolsonaristas e petistas se incomodaram com a aproximação entre Lula e o governador de São Paulo

As cenas na tragédia em São Paulo foram em tudo diferentes. Lula acentuou o contraste entre ele o antecessor no tratamento dado às vítimas. Ao lado das outras autoridades, ele aproveitou para destacar que uma ação conjunta entre os gestores é possível, mesmo que sejam políticos de partidos e ideologias diferentes. “Queria mostrar para vocês uma cena que há muito tempo não viam no Brasil: um governador, um presidente e um prefeito sentados em uma mesa em função de uma coisa que atinge a todos nós. O bem comum do povo é muito mais importante do que qualquer divergência que a gente possa ter”, declarou. “Veja que coisa bonita e simples: estamos juntos, acabou a eleição.” A ocasião confirmou o apurado faro político do petista, que galvanizou a mobilização e a comoção popular. Também serviu para “virar a página” do início da sua gestão, que ainda está chamuscada pelos atentados de 8 de janeiro, pelos desnecessários atritos com o Banco Central e pela falta de bandeiras para marcar os cem primeiros dias.

PRESENTE Lula no dia 8 de janeiro em Araraquara (SP), atingida por chuvas. Abaixo, 13 dias depois, o presidente ao lado de Yanomamis, em Roraima (Crédito:Tetê Viviane/Futura Press)
Divulgação

Foi a terceira viagem de Lula para visitar locais atingidos por catástrofes. No dia 8 de janeiro, estava em Araraquara (SP) para avaliar danos causados pelas chuvas na região. Duas semanas depois, deslocou-se para Roraima, na área em que se desenrola o drama humanitário dos Yanomamis. Junto com as viagens internacionais, esse acompanhamento “in loco” de desastres está virando uma marca de sua administração. O mandatário pode ter ganhos de imagem com isso. A história ensina que os governantes são responsabilizados e punidos por catástrofes, mas também podem ser beneficiados se demonstrarem empatia ou resposta eficiente. É uma iniciativa providencial para Lula, principalmente porque ele já elegeu a área social como a grande bandeira de seu terceiro mandato.

Cooperação

Tarcísio de Freitas igualmente se beneficiou. Encontrou sua persona como gestor, afastando-se do bolsonarismo. Declarou que a presença de Lula dava “amparo e conforto” e que o momento exigia um “regime de cooperação”. Manifestou-se ainda muito grato pela parceria com o governo federal e exaltou o fato de Lula ter ido pessoalmente ao local. Na quarta-feira, o governador ainda vistoriou a região de helicóptero ao lado de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente que é demonizada pelos apoiadores radicais do ex-presidente. As manifestações do governador e do presidente, de certa forma, marcaram o enterro simbólico do extremismo que contaminou a política no último período, pelo menos de forma temporária. Por isso, é até positivo que os dois polos do espectro político tenham se enfurecido. Os bolsonaristas cosideraram a atitude republicana do governador de São Paulo uma traição — no mínimo, um erro diante de uma armadilha preparada pelo presidente. E os petistas exaltados se irritaram com a aproximação de Lula com Tarcísio, um candidato natural a herdar os votos dos conservadores na eleição presidencial de 2026, já que Bolsonaro provavelmente estará inelegível.

DESALENTO Um bebê é resgatado por socorristas na Barra do Sahy, uma das praias mais atingidas pela tragédia (Crédito: Prefeitura de São Sebastião)

Para o cidadão, o importante é que seus governantes estejam coordenados em prol da sociedade. E isso de fato ocorreu numa calamidade pública de proporções inéditas. Na última quinta-feira, ainda havia 57 desaparecidos e mais de 3.500 desabrigados. O Litoral Norte paulista recebeu o maior índice de chuva já registrado no País. São Sebastião foi um dos municípios mais afetados, com deslizamentos de encostas, alagamentos e bairros isolados devido à interdição de vias de acesso. Entre 9h de sábado e 9h de domingo, a chuva somou níveis alarmantes em Bertioga (680 mm), São Sebastião (626 mm), Ilhabela (337 mm), Ubatuba (335 mm) e Caraguatatuba (234 mm). Na Baixada Santista, os níveis foram igualmente altos em Guarujá (388 mm), Santos (225 mm), Praia Grande (203 mm) e São Vicente (186 mm). A precipitação torrencial que começou na noite de sábado foi resultado de uma combinação de ar quente e úmido que vem do Atlântico Equatorial com um sistema de baixa pressão no Atlântico, onde a temperatura do mar está elevada. O fenômeno de dimensão ímpar empurrou a evaporação do mar para o continente.

 

CONTRASTE Jair Bolsonaro em São Francisco do Sul (SC), no final de 2021, enquanto a Bahia enfrentava chuvas (Crédito:Divulgação)

Nas praias do Litoral Norte, em especial, a ocupação de veraneio tem crescido nas últimas décadas, apesar da limitação de construções. O avanço tem aumentado a população local que presta serviços. Ela passou a ocupar cada vez mais os morros ou locais de risco. É nessas áreas que está o maior número de vítimas. O caseiro Gildevan Dias da Silva, 48, está entre os que perderam sua casa. “Não tenho mais palavras. Moro no bairro de Camburi, ao lado das encostas. A cem metros existe um condomínio e lá foi o primeiro óbito. O barranco desceu, caiu em cima das casas e uma criança de nove meses ficou nos escombros.” Monica Antunes, 49, fotógrafa, mora na praia vizinha, Boiçucanga. Integrou-se a um mutirão promovido pelo chef Eudes Assis, empresário da região que está fazendo marmitas para a equipe de resgate e vítimas. “A situação é bem grave”, diz ela. “Tenho conversado com caiçaras, pessoas que moram na região há mais de 50 anos e nunca viram nada parecido. Da minha casa vejo um morro a 5 km. De lá foi retirada uma família com quatro pessoas. Conheci um menino num hospital de Caraguatatuba que está sozinho. Tem quatro anos e está sem nenhum responsável, pois não acharam parentes.” O empresário Leandro Bartulic, 34, conta que conseguiu voltar para São Paulo na terça-feira, mas toda a família ficou na praia de Juquehy, uma das mais afetadas. “Estão cobrando R$ 50 mil a viagem de helicóptero para ir retirar alguém”, diz.

“Quando vemos que a maior autoridade do País está agindo de maneira ágil, ficamos esperançosos” Aliel Machado (PV), deputado

CAOS Bombeiros e voluntários trabalham no resgate de vítimas em São Sebastião, que teve o maior índice de chuvas já registrado (Crédito:Bruno Santos)

Enquanto o governador permanecia liderando os esforços de resgate e os ministros multiplicavam as iniciativas de auxílio, a mobilização de Lula repercutiu no Congresso. O líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES), disse que o governo está se aliando ao poder político local por questões humanitárias e suprapartidárias. “Os brasileiros, enfim, possuem um governo, com sensibilidade e capacidade de reagir aos desafios do País. Essa mudança é alentadora”. Na Câmara, o assunto também predominou entre parlamentares de diferentes partidos. O deputado Castro Neto (PSD-PI) avaliou a ação federal como “rápida e exemplar” e disse que salvar vidas é a prioridade e está acima de qualquer diferença partidária ou ideológica. “O grande diferencial em relação ao último governo é que o povo passou a ser prioridade e a palavra e ordem é reconstruir o País.” Para o deputado Aliel Machado (PV-PR), Bolsonaro não conseguia compreender a responsabilidade de ser presidente da República, terceirizava a culpa e apostava em intrigas. “O Brasil também sofre e se solidariza. E quando vemos que a maior autoridade do País está agindo de maneira ágil, nos sentimos mais confortáveis e esperançosos.”

O líder do PSB na Câmara, Felipe Carreras (PE), ressalvou que as ações do governo precisam refletir em projetos futuros que garantam a segurança de moradores de áreas de risco. “Foi uma mudança brusca de gestão. É muito importante para o País um presidente que mostra essa sensibilidade. Acho que tem que ter um acompanhamento maior e investimento em prevenção”, frisou. Mas esse otimismo precisa ser visto com reserva, já que o caos no litoral paulista também lembrou mais uma vez que a ocupação irregular e a construção de moradias em áreas de risco são chagas antigas.

NO MAR, NO AR, NA TERRA Barcos auxiliam em Barra do Sahy, helicóptero do Exército em São Sebastião e doações no rio Sahy (Crédito:WERTHER SANTANA)

Apenas na área atingida, no município de São Sebastião, em 2019 havia 52 pontos sujeitos a deslizamentos de terra em 21 núcleos de moradias ou bairros, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A jornalista Márcia Pereira, 49, que teve sua casa de veraneio na praia de Camburi alagada, lembra que as principais vítimas estavam nos bairros mais periféricos. “São as pessoas que moram perto das encostas e morros onde a vida é mais barata. Eles compram imóveis ou constroem. E nem é ilegal, pois compraram.”

O ministro do Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, que está à frente da reação federal à tragédia, disse à ISTOÉ que o governo mapeou 14 mil áreas com alto risco de deslizamento de encostas no País. Essas regiões abrigam quase 4 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade. Em 1,3 mil municípios, foi reconhecido estado de emergência. Esse número tende a aumentar, avaliou o ministro. “Estamos ajudando todos, o apoio vai desde carro-pipa no Nordeste, alimentação, produtos de higiene pessoal, depende muito da situação de cada região. O trabalho de prevenção, de ações de estruturação de encostas, de habitação, de demanda dirigida, deve ser muito forte no governo Lula.”

Descaso

O ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, denunciou o descaso da gestão Bolsonaro. “Infelizmente o governo anterior desmontou toda a estrutura de prevenção e cuidados com desastres, que estava com orçamento quase zero “, declarou. Góes diz que o valor deixado pelo governo Bolsonaro para ações emergenciais relacionadas a desastres naturais no Brasil foi de R$ 25 mil. Com a aprovação da PEC da Transição e um reforço em mais de R$ 130 milhões no projeto inicial da Lei Orçamentária Anual de 2023, a soma para ações de prevenção e defesa civil ultrapassou R$ 766 milhões.

“O valor deixado por Bolsonaro para ações emergenciais foi de R$ 25 mil” Waldez Góes, ministro do Desenvolvimento Regional

Entre as medidas anunciadas por Lula está a retomada do programa Minha Casa Minha Vida, que foi praticamente paralisado no governo Bolsonaro. O presidente inclusive se propôs, no calor da hora, a levar o programa para a região atingida. É uma notícia auspiciosa, mas insuficiente diante do desafio. O governo tem a meta ambiciosa de contratar 2 milhões de moradias até o fim da gestão, mas isso representa apenas cerca de um terço do déficit calculado de residências. E o programa, desde o seu lançamento em 2009, não amenizou o problema de falta de moradias — ao contrário, o déficit habitacional aumentou desde então. Também é necessário rever as construções distantes dos locais de trabalho dos moradores. Além disso, a remoção de locais de risco e o sistema de alerta precisam ser aperfeiçoados. Afinal, a mudança climática está ampliando a gravidade e a frequência desses eventos. O novo governo acertou em priorizar o meio ambiente, mas há um longo caminho a percorrer. O País está redescobrindo as noções de justiça e solidariedade, mas precisa enfrentar seus desafios históricos, que continuam a perdurar ao longo de diferentes governos.

SEM ACESSO Trabalhadores tentam liberar a Rio-Santos na praia de Toque-Toque (Crédito:Divulgação)

Colaboraram Dyepeson Martins e Elba Kriss