Mega data center do TikTok ameaça agravar crise hídrica no Ceará: Caucaia será palco de projeto bilionário

Caucaia – CE: O avanço acelerado da inteligência artificial e a matriz energética renovável transformaram o Brasil em um destino estratégico para gigantes da tecnologia. Um dos principais exemplos é o projeto bilionário que promete abrigar a infraestrutura do TikTok em Caucaia, município da região metropolitana de Fortaleza (CE), conhecido historicamente por enfrentar longos períodos de seca.

Brasil na mira das big techs: energia limpa e posição estratégica atraem mega data centers

 

Nenhum órgão regulador ou do meio ambiente parece ter sido consultado nesse processo.

A combinação de abundância de energia renovável, posição geográfica privilegiada e baixo custo operacional impulsiona uma verdadeira corrida pela instalação de data centers no país. Atualmente, pelo menos 22 grandes projetos aguardam autorização governamental — cinco deles em cidades afetadas sistematicamente pela escassez hídrica nas últimas duas décadas.

O mais emblemático é o mega data center que será construído em Caucaia, em uma área equivalente a 12 campos de futebol, com investimento estimado em R$ 55 bilhões. O objetivo: transformar a cidade cearense em um hub tecnológico essencial para o TikTok, plataforma chinesa que figura entre as líderes globais em produção e distribuição de conteúdo digital.

Infraestrutura robusta, mas com alto custo ambiental: o paradoxo dos data centers

Embora a promessa seja de desenvolvimento econômico, geração de empregos e modernização da infraestrutura local, o impacto ambiental preocupa especialistas e moradores. Data centers consomem quantidades colossais de energia e água, essenciais para manter o funcionamento ininterrupto dos supercomputadores e sistemas de resfriamento. Em regiões já fragilizadas pela escassez hídrica, como Caucaia, o risco de colapso é evidente.

Segundo dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil, Caucaia enfrentou situação de emergência por seca ou estiagem em 16 dos últimos 21 anos. Em 2019, por exemplo, quase 10 mil moradores foram afetados pela falta de água potável, com severas perdas agrícolas e insegurança alimentar.

Negócios bilionários à sombra da crise hídrica: o silêncio sobre o consumo de água

Apesar do potencial impacto, o governo e as empresas envolvidas mantêm sigilo sobre o consumo previsto de água para o empreendimento. O projeto está sob responsabilidade formal da Casa dos Ventos, empresa brasileira especializada em energia eólica, que recentemente ingressou no setor de data centers.

Em nota, a Casa dos Ventos afirmou que pretende transformar o Porto do Pecém em um complexo de inovação e transição energética, e destacou que analisa “oportunidades de parceria” com empresas complementares. O TikTok, embora seja o cliente confirmado pela reportagem do Intercept Brasil junto a membros do governo, não se pronunciou.

A formalização do projeto já avançou: a Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (Semace) concedeu a licença prévia, uma das três exigidas para a operação.

Caucaia: entre cabos submarinos e benefícios fiscais

A escolha de Caucaia não é aleatória. A cidade abriga a Zona de Processamento de Exportações (ZPE) de Pecém, que oferece uma série de incentivos fiscais e desburocratização para empresas exportadoras. Além disso, Fortaleza é um dos principais pontos de conexão de cabos submarinos que ligam o Brasil a outros continentes, garantindo baixa latência e alta velocidade de tráfego de dados — fatores críticos para operações como as do TikTok.

Corrida por data centers se intensifica no Brasil: quem ganha e quem perde?

O caso de Caucaia se insere em uma tendência nacional. Municípios com histórico de escassez hídrica estão entre os destinos preferidos para novos data centers. Além do Ceará, cidades como Igaporã (BA) e Campo Redondo (RN) também estão na rota dos megaprojetos tecnológicos, mesmo tendo decretado situação de emergência por seca em vários anos recentes.

Fonte: Atlas Digital de Desastres, S2ID, IBGE e Ministério de Minas e Energia. Criado com Datawrapper

No Rio Grande do Norte, por exemplo, Campo Redondo decretou emergência por estiagem em 14 dos últimos 21 anos. Igaporã, na Bahia, teve 12 decretos semelhantes desde 2003, afetando milhares de moradores e exigindo a atuação constante de caminhões-pipa.

Empresas como a Renova, responsável por dois projetos em Igaporã, afirmam que as instalações terão “consumo de água quase nulo” graças a métodos de resfriamento mais eficientes. A companhia garante que usará poços tubulares profundos e não recorrerá a fontes públicas de abastecimento. No entanto, sem transparência sobre os relatórios técnicos, a população segue sem acesso às informações oficiais sobre o real impacto ambiental dessas operações.

Governo acelera negociações com big techs, mas ignora comunidades afetadas

Nos bastidores, o governo brasileiro articula intensamente a atração de investimentos de big techs para a construção de data centers. Executivos do TikTok, da matriz ByteDance e representantes do governo do Ceará mantiveram uma série de reuniões nos últimos meses, algumas com ministros de Estado, como Geraldo Alckmin, que recebeu a comitiva chinesa enquanto exercia a Presidência da República.

Apesar da magnitude do projeto, não houve participação do Ministério do Meio Ambiente nas negociações nem audiências públicas com as comunidades diretamente impactadas.

Jornalistas investigativos solicitaram as atas das reuniões, mas o governo alegou que não houve registro. A ausência de transparência reforça o receio de que interesses corporativos estejam se sobrepondo aos direitos socioambientais das populações locais.

Consumo de energia e água deve disparar com a inteligência artificial

A explosão no uso de inteligência artificial acelera a demanda global por data centers. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), o consumo energético dessas estruturas deverá dobrar até 2030, atingindo 945 mil GWh — equivalente ao consumo atual do Japão.

As big techs reconhecem o impacto: relatórios de sustentabilidade de 2024 indicam que 42% da água consumida pela Microsoft vem de áreas sob estresse hídrico, enquanto o Google admite que 15% de sua água é extraída de regiões com alta escassez.

O resfriamento dos supercomputadores requer volumes expressivos de água, parte da qual se perde por evaporação. Assim, em locais vulneráveis como Caucaia, esse modelo de desenvolvimento pode intensificar ainda mais as crises climáticas e o risco de colapso hídrico.

O dilema do progresso: inovação ou desastre ambiental?

A instalação do mega data center do TikTok em Caucaia expõe um dilema central para o Brasil: como equilibrar a atração de investimentos de tecnologia de ponta com a preservação ambiental e a segurança hídrica das comunidades?

Sem políticas públicas claras, ampla consulta popular e rigor na avaliação dos impactos ambientais, o país corre o risco de repetir velhos erros, comprometendo a sustentabilidade em nome de um progresso que pode se revelar insustentável.