Michelle Bolsonaro, Meloni e Le Pen personificam rebranding político que busca legitimar pautas radicais e atrair eleitoras com discurso de fé, família e nação
Durante décadas, a extrema direita foi percebida como um território essencialmente masculino — dominado por líderes autoritários, discursos agressivos e estruturas partidárias fechadas a mulheres. Mas esse cenário tem mudado, e não por acaso. Figuras como a italiana Giorgia Meloni, a francesa Marine Le Pen e a brasileira Michelle Bolsonaro estão no centro de uma estratégia calculada: usar a presença feminina para suavizar a imagem de partidos radicais, legitimar discursos conservadores e atrair o voto feminino.
Rebranding da extrema direita: do discurso virulento à “mãe da nação”
Cientistas políticos como Lilian Sendretti (Cebrap) apontam que a ascensão de mulheres na linha de frente da ultradireita faz parte de um “rebranding” — uma tentativa de limpeza de imagem. “A extrema direita sempre foi associada ao uso da violência política, a uma estética masculina e a discursos virulentos. As mulheres funcionam como um verniz de moderação”, afirma Sendretti.
A identidade pública dessas líderes costuma enfatizar papéis tradicionais, como o de esposa, mãe e mulher cristã. Giorgia Meloni cunhou o mantra “sou mulher, sou mãe, sou italiana, sou cristã”, enquanto Michelle Bolsonaro se define nas redes como “esposa, mãe, voluntária e serva do Senhor”. A ex-primeira-dama, inclusive, já afirmou que “a mulher tem que ser ajudadora do esposo”.
Michelle Bolsonaro: possível aposta da ultradireita para 2026
Presidente do PL Mulher, Michelle Bolsonaro desponta como uma possível candidata à Presidência em 2026. Embora seu nome ainda enfrente resistência dentro do próprio campo bolsonarista, ela vem ganhando protagonismo como representante de uma base evangélica conservadora — e como figura capaz de reduzir a rejeição feminina ao bolsonarismo, um desafio que se mostrou central na eleição de 2022.
Em eventos do PL, Michelle tem adotado um discurso duro contra o feminismo de esquerda, mas sob a roupagem de empoderamento baseado na fé, na maternidade e na família tradicional. “A direita radical está disputando o feminismo, não negando-o completamente”, analisa a socióloga Esther Solano. “Ela se coloca como a legítima guardiã dos valores femininos, da verdadeira emancipação baseada em princípios conservadores.”
Marine Le Pen e o avanço feminino na ultradireita europeia
Na Europa, a fórmula tem rendido frutos. Marine Le Pen conquistou um crescimento de 10 pontos entre o eleitorado feminino francês entre 2019 e 2024, segundo o instituto Ipsos. Mesmo condenada pela Justiça francesa no início de 2024 e impedida de disputar cargos públicos por cinco anos, Le Pen continua deputada e mantém forte presença política.

Estudos acadêmicos respaldam essa tendência. Uma pesquisa de 2019 da cientista política Diana Z. O’Brien mostrou que partidos liderados por mulheres são percebidos como mais moderados, independentemente de sua agenda real — o que ajuda a normalizar discursos extremistas entre setores mais amplos do eleitorado.
Do “empoderamento conservador” ao femonacionalismo
Com o avanço de líderes femininas, partidos da ultradireita também passaram a abordar temas de gênero e segurança pública sob uma nova perspectiva. “Partidos como o PL têm adotado pautas punitivistas no combate à violência contra a mulher, incluindo a defesa do armamento feminino”, diz Lilian Sendretti.
Na Europa, esse movimento ganhou contornos mais nacionalistas e xenofóbicos. Em nome da “proteção das mulheres”, Meloni e Le Pen reforçam discursos anti-imigração ao associar homens muçulmanos e estrangeiros a crimes de violência sexual. Essa abordagem foi conceituada como femonacionalismo pela socióloga Sara Farris (Goldsmiths – Reino Unido): o uso instrumental de causas femininas para justificar políticas nacionalistas e islamofóbicas.
Na França, Le Pen lidera campanhas contra o uso do hijab (véu islâmico) sob o argumento de “libertação feminina”. No Brasil, onde o inimigo externo não é tão mobilizável, a ultradireita se ancora em um ecossistema religioso conservador para promover sua versão de valores femininos.
A nova mulher da ultradireita: fé, lar e liderança política
A figura ideal promovida pela nova ultradireita combina elementos até então vistos como contraditórios: uma mulher empoderada financeiramente, mas submissa ao marido; influente na política, mas devota ao lar; ativa nas redes sociais, mas conservadora nos costumes.

“É uma mulher de fé, que representa a base evangélica, mas que também encarna o papel de guardiã da família e da nação”, resume Esther Solano.
A aposta em lideranças femininas, portanto, não é apenas simbólica. Trata-se de uma reconfiguração estratégica que busca ampliar o apelo da direita radical sem abrir mão de sua essência ideológica — apenas embalando-a em novas formas.