Juristas, representantes das big techs e entidades da sociedade civil ouvidos pela reportagem acreditam que a resolução sobre propaganda eleitoral publicada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no dia 1º de março é ilegal, pois violaria o Marco Civil da Internet.
O ponto nevrálgico é o artigo 9E. Ele estabelece que as plataformas de internet serão solidariamente responsáveis “civil e administrativamente quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral”.
Precisam ser retiradas imediatamente postagens “antidemocráticas”, que violem determinadas legislações, entre elas a Lei do Estado Democrático de Direito; “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados” sobre o processo eleitoral, “grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência” contra membros do Judiciário; “comportamento ou discurso de ódio”, incluindo “racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas”; e “conteúdo fabricado ou manipulado” por inteligência artificial sem receber os devidos rótulos como manda a resolução.
A linguagem do artigo dá a entender que as empresas podem ser responsabilizadas por conteúdo que não tenha sido denunciado por usuários ou pelo TSE e sem que haja uma determinação judicial de remoção da postagem ilícita.
Segundo advogados, esse artigo muda o regime de responsabilidade das big techs no Brasil, pois qualquer pessoa que encontrar algum conteúdo em violação nas plataformas poderá processar a empresa, além do autor do post.
O Marco Civil da Internet, principal lei que regula o setor no Brasil, de 2014, estabelece que empresas só podem ser punidas civilmente por conteúdo de terceiros se não removerem após ordem judicial, a não ser nos casos de nudez não consentida ou violação de propriedade intelectual.
“Esse artigo não pode existir em um mundo onde há o Marco Civil da Internet –não existe esse excepcionalismo eleitoral, que vai contra uma lei federal”, diz Carlos Affonso Souza, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade.
A resolução também estaria violando a Lei das Eleições brasileira. Essa legislação estabelece que os provedores só podem ser multados após notificação judicial e que as empresas só serão responsáveis se comprovadamente tiverem “prévio conhecimento” da publicação.
Segundo as empresas, caso a nova resolução do TSE permita punição às plataformas por conteúdo não denunciado ou sem notificação judicial, elas terão de realizar um sistema de vigilância, um monitoramento ativo de todas as publicações durante o período eleitoral.
Como são centenas de milhões de postagens, as empresas usariam, para uma primeira filtragem, mecanismos de inteligência artificial para detectar conteúdos em violação. Mas esses mecanismos ainda são notoriamente falhos —muitos usam busca por palavra-chave– e fatalmente haveria uma remoção excessiva, funcionando como uma censura.
“Na eleição, os candidatos concorrentes vão ficar notificando sem parar, dizendo que é conteúdo com discurso de ódio, e as plataformas vão remover”, diz Souza.
O artigo 9E da resolução tem trechos iguais ao documento com sugestões do ministro Alexandre de Moraes entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) em abril de 2023, para serem incluídas no PL 2630, o PL das fake news. A maioria das sugestões de Moraes, que hoje é presidente do TSE, não foi incluída –e a votação do PL foi suspensa em maio, por falta de apoio.
Segundo Bia Barbosa, diretora do DiraCom (Direito à Comunicação e Democracia) e integrante da Coalizão Direitos na Rede, o TSE “avançou o sinal” após a omissão do Congresso, que não conseguiu aprovar a proposta de regulação.
“Todos nós vamos pagar pelo fato de o Brasil não ter regulamentado o regime de responsabilidade”, diz.
“Sim, o Marco Civil completa dez anos e podemos revisá-lo –mas a resolução é um risco à liberdade de expressão ao determinar a responsabilização solidária das plataformas, que vão sair removendo conteúdo em massa.”
Advogados e empresas esperam que o TSE publique um esclarecimento sobre a resolução, para especificar se poderão ser responsabilizadas por conteúdos antes de notificação judicial.
As empresas acreditam que, na prática, a resolução equipara plataformas de internet a veículos de mídia como jornais e TVs em relação à responsabilidade pelo conteúdo veiculado. Da mesma maneira que um jornal pode ser processado por uma matéria que foi publicada, a plataforma poderia ser acionada por conteúdo. Moraes já afirmou que “deve se equiparar na responsabilidade a empresas de comunicação e publicidade, ainda que com suas peculiaridades”.
As empresas afirmam que são meras distribuidoras, e não editoras ou produtoras de conteúdo, então não podem ser responsabilizadas.
Na resolução que baixou dez dias antes do segundo turno da eleição de 2022, chamada de “poder de polícia”, Moraes já expandiu o poder do TSE de mandar as plataformas removerem determinados conteúdos e aplicar multas, caso não cumpram as ordens no prazo determinado. Segundo Barbosa, se antes era o TSE decidindo que conteúdo remover, agora, com a nova resolução, as plataformas é que vão decidir –e vão optar por derrubar em massa para evitar punições.
Juristas destacam pontos positivos da resolução, como o veto a deepfakes e chatbots que simulam conversa com candidatos, a rotulagem dos conteúdos eleitorais que usem inteligência artificial, e a instituição do chamado “dever de cuidado”.
No artigo 9D, está previsto que as plataformas, em ano eleitoral, devem elaborar uma avaliação “de impacto de seus serviços sobre a integridade do processo eleitoral”, a fim de implementar medidas eficazes e proporcionais para mitigar os riscos identificados.
É algo semelhante ao chamado “dever de cuidado” previsto na Lei de Serviços Digitais que entrou em vigor na União Europeia nem agosto passado.
A resolução também inclui uma “cláusula Francischini” na era da inteligência artificial. Em 2021, o TSE cassou o deputado estadual paranaense Fernando Francischini (à época no PSL) devido à publicação de vídeo no dia das eleições de 2018 em que ele afirmava que as urnas eletrônicas haviam sido fraudadas para impedir a votação no então candidato a presidente Jair Bolsonaro.
A cláusula proíbe o uso, na propaganda eleitoral, de conteúdo fabricado para difundir fatos inverídicos ou descontextualizados com potencial de prejudicar o processo eleitoral. O descumprimento configura abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, que leva a cassação do registro ou do mandato.
Patrícia Campos Mello/Folhapress