O programa permite rastrear a localização de pessoas por meio dos dados transferidos do celular a torres de comunicação. A Abin não é o único órgão a ter a ferramenta, que também foi adquirida pelo Exército e por governos estaduais.
Além disso, uma ação que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) discute a regulamentação do uso desse tipo de software por órgãos de inteligência.
A zona cinzenta nas normatizações sobre esse tema levou a PF a focar em outros elementos de provas para apontar, no pedido de prisões e de buscas e apreensões da quarta fase da Operação Última Milha, suspeitas de espionagem ilegal com uso da estrutura do governo durante a gestão Bolsonaro. Essa etapa foi deflagrada na quinta-feira (11).
No documento que fundamentou as cinco prisões preventivas (sem tempo determinado) decretadas pelo ministro Alexandre de Moraes, a Polícia Federal deixa claro que o foco da apuração são “operações de inteligência não-republicanas” tanto na Abin como no Palácio do Planalto da gestão anterior.
Essas operações irregulares podem, mas não necessariamente, utilizar o software FirstMile.
“O produto ilícito das ações clandestinas era, em regra, a desinformação contra opositores, instituições, bem como ações de interferência direta e/ou indireta em investigações”, diz o texto assinado pelo delegado Daniel Carvalho Brasil Nascimento.
“[O FirstMile] foi tão-somente um dos sistemas empregados nas ações clandestinas que, por seu inegável caráter intrusivo, restou por expor a existência da estrutura paralela a partir de seu uso desvirtuado.”
O próprio Moraes, responsável pelo inquérito no STF, afirma em seu despacho que as “inúmeras ações clandestinas” de 2019 a 2022 “indicaram que os recursos humanos e técnicos empregados pela estrutura paralela valiam-se de sistemas oficiais e clandestinos para obtenção dos dados necessários para os seus interesses”.
E acrescenta: “O sistema FirstMile foi apenas uma das ferramentas utilizadas nas ações clandestinas, sendo, em regra, utilizado para obter a localização de determinados alvos com o objetivo de realizar ações de campo ou para tentar vincular opositores a determinadas pessoas”.
O documento da PF sobre as investigações em curso apontou que, muitas vezes, agentes da Abin sob a chefia do ex-diretor do órgão Alexandre Ramagem eram acionados para “caçar podres” sobre autoridades ou servidores e produzir relatórios extraoficiais.
Foram alvos das ações da Abin paralela, por exemplo, auditores da Receita Federal que produziram o relatório de inteligência fiscal que originou a investigação sobre as “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio, que expôs o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Os investigados checaram, por exemplo, relações políticas dos auditores e das suas famílias, dívidas tributárias, redes sociais e quaisquer outras informações que pudessem desqualificá-los.
A “Abin paralela” também foi acionada para buscar eventuais relações entre Moraes e um delegado da Polícia Civil investigado por suspeita de corrupção.
Há, ainda, pesquisas feitas sobre pessoas que trabalham para os gabinetes de autoridades –como no caso de um dossiê elaborado contra o ministro do STF Luís Roberto Barroso— e também nas prestações de contas de campanhas de políticos.
Muitas vezes, parte desse material era enviado a influenciadores bolsonaristas, que publicavam os conteúdos em redes sociais e alimentavam os apoiadores do então presidente. Um desses influenciadores foi preso na operação.
As informações eram cedidas aos influenciadores não apenas por servidores lotados na Abin, apontam as investigações, mas também por integrantes do chamado “gabinete do ódio”, que atuava junto à Presidência da República.
O abandono do FirstMile como ponto central na investigação foi criticado, inclusive, pelo próprio Ramagem em postagem no X (ex-Twitter). O ex-chefe da Abin é atual deputado federal e pré-candidato do PL à Prefeitura do Rio de Janeiro. Ele é ligado ao vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ), também investigado.
“O tal do sistema FirstMile, que outras 30 instituições também adquiriam, parece ter ficado de lado”, disse Ramagem.
“A aquisição foi regular, com parecer da AGU, e nossa gestão foi a única a fazer os controles devidos, exonerando servidores e encaminhando possível desvio de uso para corregedoria. A PF quer, mas não há como vincular o uso da ferramenta pela direção-geral da Abin.”
Apesar da mudança da abrangência da operação, a Polícia Federal não deixou de sustentar elementos encontrados em outras fases da Última Milha —inclusive informações que não conseguiu comprovar.
Por exemplo, que um ex-diretor da Abin teria pilotado um drone nas proximidades da residência do então governador do Ceará e atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT).
Como mostrou a Folha, o ex-diretor não pilotou o drone nem estava no Ceará na data do ocorrido.
A PF também mantém que o suposto esquema de arapongagem na Abin tentou vincular os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes à facção criminosa PCC, embora isso esteja amparado na interpretação de dois parágrafos especulativos de um documento que teria sido produzido no gabinete de um deputado federal.
José Marques e Thaísa Oliveira/Folhapress